Santa Clara – a primeira
estrada de rodagem do Brasil
estrada de rodagem do Brasil
Percorrer o giro das estradas primitivas abertas àquele tempo, hoje sem sombras, nem índios, nem doenças, nem obstinação, parece-nos com poucas vistas o quanto eram sombrias e tristes as agruras da vivência mateira. Baixio imenso. Muita serrania. Atoleiros de fazer medo. Extensos de ser. Morros e obstáculos intransponíveis, por vezes importantes para a visão, alívio e descoberta daqueles destemidos ‘bandeirantes’. Com certeza a floresta no seu escuro era uma eternidade.
Para explorar esta aventura peguei a minha Tornado e fui percorrer o traçado da velha estrada. De Santa Clara até Filadélfia, atual Teófilo Otoni, foi construída a primeira estrada ‘carroçável’ do Brasil. Foram 164 km, equivalentes a 27 léguas e meia dentro da mata virgem. O terreno, muito acidentado e desconhecido.
A construção da primeira estrada de rodagem do Império se deu por um ato heróico de Ottoni. Em plena selva, o aclive ou rampa não poderia ser superior a 5%, mais de cinqüenta córregos e rios para transpor, dificuldades que se multiplicavam.
O traçado da estrada não era previsto ou definitivo, tampouco o mais adequado. Também não tinha previsão de orçamento para os custos de construção, que ficariam muito acima das previsões.
Aliado a estes fatores existiam outros aspectos intrigantes: não tinham mão de obra; empreiteiros dispostos a enfrentar o desafio da construção bravia; malária e ataque de indígenas eram preocupantes.
Mas Ottoni não tinha saída, obteve o aval da Província e tocou o seu projeto, abrindo a estrada de Santa Clara no meio da selva. Foram cinco anos de luta e sofrimento. Sua inauguração ocorreu no ano de 1857, no dia 23 de agosto, quando ele “... entrou em Filadélfia com seu carro de quatro rodas, com eixo fixo, puxado por bestas e seguido por outros carros. O impacto foi notável. Cerca de 2 mil pessoas participavam da inauguração da estrada”. Miranda, 2007.
A Santa Clara – Filadélfia exigiu a construção de 174 pontes de madeira de lei e dinheiro, muitas vezes mais do que o previsto. Foram 180 km de estrada, depois de pronta, o equivalente a 30 léguas, quase três léguas a mais do previsto.
Para construir a estrada Teófilo Ottoni planejou e dividiu o trecho da seguinte maneira: Trecho Filadélfia – Córrego da Saudade – 31 km; Córrego da Saudade – Morro do Cupam – 21 km; Morro do Cupam – Colônia do Urucu – 33 km; Colônia do Urucu – Ribeirão das Pedras – 42 km; Ribeirão das Pedras – Santa Clara – 37 km.
Para dar suporte aos operários da construção a Companhia do Mucuri incentivou e contratou serviços de apoio, ao longo de toda a estrada em construção, geralmente eram ranchos, moradias precárias, currais e piquetes cercados, para abrigar a passagem das tropas de mulas e burros, além dos viajantes e tropeiros, onde pudessem soltar seus animais e repousar com segurança e se alimentarem.
O Projeto de Ottoni representava para o Mucuri o lançamento de bases econômicas, sociais e culturais, com acesso a propriedade para milhares de pessoas, de maneira integrada, na região do nordeste mineiro. O Brasil, portanto, não podia ser visto somente pelo litoral.
No ano de 1859, um ano após a sua construção,
“... já trafegavam pela Santa Clara mais de quarenta carros particulares, duzentos carros de boi e quatrocentos lotes de burros.
Ottoni transcreveu deste modo esse histórico momento:
“...em 1857 foi talvez com sentimento de vaidade que percorri no meu carro as 27 léguas e meia da estrada de Santa Clara, e no dia 23 de agosto entrei triunfalmente na minha querida Filadélfia”. Miranda, 2007, p. 109
Logo após a construção da estrada de rodagem Santa Clara, no ano de 1858, moravam em Filadélfia mais de 5 mil pessoas, sendo que na área da Companhia já habitavam mais de 20 mil. Teófilo Ottoni morreu em 17/10/1869. Nove anos mais tarde, em 1878, Filadélfia transforma-se em Teófilo Otoni.
“Depois da encampação, a navegação do Mucuri foi abandonada e o leito do rio voltou a ser obstruído, perdendo a sua navegabilidade. A colônia de Santa Clara desapareceu. A população de Filadélfia decresceu. A estrada foi parcialmente abandonada. Mas o que estava plantado não tinha volta, não tinha retorno”. Miranda 2007.
Passados 152 anos da sua inauguração, vê-se que grande parte dela ainda continua sendo útil à região, com transporte regular. Outros trechos, entretanto, obstruídos, a condenaram ao abandono e esquecimento. Pelo conjunto da obra, sobretudo pela sua relevância histórica, cultural, social e econômica, vale a pena retomar a idéia da sua reconstrução, total ou parcial, não somente pelo trânsito, mas pelo que representa e pelo potencial turístico que poderá ser evidentemente explorado.
Por ocasião do bicentenário de Otoni, na cidade do Serro-MG foi feita a instalação do marco comemorativo dos 150 anos da Estrada Santa Clara - Filadélfia, no Calçadão Manoel Martiniano.
Vale a pena, sei que vale, criar um Instituto Santa Clara, uma ONG, uma idéia Santa Clara. Vale a pena estabelecer relações, parcerias, de modo que haja uma ponte entre os diversos obstáculos que advirão e a potencial solução, quando no mínimo, integrar os seus comportamentos.
Particularmente estou convencido de que, assim como eu fui atrás deste painel de reminiscências locais, o caro leitor também é responsável pela estruturação destas idéias. Oxalá, a administração pública municipal possa enxergar isto com outros olhos?